Entrevista

Entrevista com o realizador Tiago Guedes e o actor Albano Jerónimo, por Inês N. Lourenço

A Herdade é uma ficção inspirada por uma figura real. Mas essa inspiração parte da personalidade em si ou da realidade de um latifundiário?
Tiago Guedes: Para mim, não foi a personalidade, definitivamente. Foi a ideia de um tipo de pessoa. Mas acredito que a pessoa em questão tenha influenciado muito a primeira versão do argumento, escrita pelo Rui Cardoso Martins, que falou muito com ele, e haverá várias histórias que poderão ter contornos que tocam a verdade. No entanto, o objectivo nunca foi fazer um biopic. Foi apenas um ponto de partida – alguém que, num certo território nacional [Herdade da Barroca d’Alva], viveu uma mudança muito grande da nossa sociedade [o 25 de Abril].

Começou por ser o escritor Rui Cardoso Martins a tecer o argumento. O que é que se seguiu a essa estrutura narrativa?
TG: A ideia partiu do Paulo [Branco], que queria fazer um filme sobre esse território e um homem “maior que a vida”. Começou por trabalhar com o Rui e eu entrei no projecto quando já existia o argumento, de cuja história me apoderei um bocado, para levá-la ao encontro do que me apetecia falar – por isso torci-a um pouco... Depois entrou ainda o Gilles Taurand para ajudar e, por fim, peguei em todos estes ingredientes e escrevi o argumento final, ou seja, peguei nos outros e escrevi o meu. E com o [Roberto] Perpignani na montagem, ainda reescrevemos outra vez!

Este é um filme com uma escala, uma grandeza diferente na sua filmografia. O que é que o levou a um projecto com esta dimensão, digamos, épica, pouco comum no cinema português?
TG: Quando o Paulo falou comigo foi exactamente para irmos ao encontro de gostos comuns, de um certo tipo de cinema antigo – americano, italiano… – que é uma paixão de ambos. Portanto, nós fomos beber a esse universo. E estou a falar de filmes que têm essa tal escala. Depois, a forma de filmar, o respeitar dos tempos, o protagonista, tudo isto dá essa sensação de uma dimensão mais épica. Mas, da minha parte, nunca houve uma intencionalidade de fazer algo maior. A lógica foi: este objecto pede isto.

E o Albano, o que é que o atraiu em relação a este personagem?
Albano Jerónimo: Uma coisa extremamente simples: eu nunca tinha feito um protagonista em cinema. E isso era um desafio, desde logo, pela gestão diária do trabalho. Em teatro tenho-o feito, mas em cinema nunca tinha tido esse gosto. Depois, a construcção da personagem do João [Fernandes], esta ideia de ser alguém “maior que a vida”, este efeito eucalipto que seca tudo à volta, este género de homem que, antes de ler o guião, sempre achei que morreria cedo – e é precisamente o contrário. Estes tipos morrem tarde e as pessoas à volta é que vão morrendo…

Estamos a falar de um homem de contradições, capaz de defender a todo o custo os seus trabalhadores da perversidade política, mas com uma relação muito fria com a mulher e os filhos…
AJ: Essa é a parte mais deliciosa, porque é exactamente onde eu encontro o seu lado humano. Ele é um ser imperfeito, e ainda por cima tem uma grande dificuldade em expressar-se, em comunicar. E isso está reflectido num corpo, numa época, numa família, num contexto…
TG: Sobre isto lembro-me de falar com o Albano sobre a necessidade de o salvar, numa ou noutra cena. Salvar no sentido de o atirar para a zona cinzenta. E esses momentos estão lá. Por exemplo, quando ele chega a casa e tem um carinho para com a mulher – até foi uma sugestão do Albano e nem dissemos à Sandra [Faleiro] – ela não foi avisada, portanto não estava à espera, e isso ficou na montagem.

As breves cenas na cavalariça são das mais belas, e dão-nos também esse lado humano dele. Uma espécie de solidão romântica partilhada com o cavalo.
TG: É onde ele consegue estar. É o seu sítio.

E o cavalo chama-se Suão, como se refere no filme, o nome do vento… Vento, aliás, que se escuta muitas vezes como “banda sonora”. Esta relação que estou a fazer tem sentido?
TG: Todo o sentido. Aliás, no argumento original o cavalo nem se chamava Suão, eu trouxe isso para o texto. Vivi 8 anos no Alentejo e deparei-me muitas vezes com este tipo de vento, que é um vento circular, que te põe numa zona em que perdes um bocadinho a noção… Claro que estou a exagerar, mas há muitos suicídios com o momento do Suão, que é um vento quente e que, de alguma forma, nos enlouquece… Eu queria muito trazer isso para o filme, sem o sublinhar. Mas é curioso que tenha reparado, porque é verdade que, para mim, enquanto banda sonora, o vento tem mesmo um papel muito importante.

O cavalo combina ainda com uma certa linguagem de western, que está no modo como se filma a dinâmica das personagens através de olhares silenciosos.
TG: Esse é um dos géneros cinematográficos que me influenciaram, e de que gosto bastante. Vi muitos western, desde logo para escrever, e no sentido de privilegiar uma certa secura, procurar uma forma de ser parco em palavras… Aliás, o que eu quis trabalhar mais foi mesmo a gestão dos silêncios.

E a isso parece juntar-se a expressão do melodrama, particularmente de Home From the Hill/ A Herança da Carne, de Minnelli, pelo modo como observa os traços da liderança e da masculinidade, muitas vezes tóxica.
TG: O Home From The Hill é um filme que esteve na génese disto tudo, não enquanto história mas enquanto universo. Foi essa masculinidade tóxica que eu fui buscar, mas ao mesmo tempo para um homem que não quero que seja mau. E isso é muito relevante no filme do Minnelli – o Mitchum não é um tipo mau, é um padrão do homem daquela altura…

E daquela condição social.
TG: Absolutamente. Ele para ser um líder tem de ser assim. E isto agrada-me muito: o não se conseguir detectar um mau a sério. Porque acho que todos temos isso dentro de nós, somos todos potenciais bons e maus, e são as circunstâncias da vida que o vão determinando, conforme as encaramos.

O Albano também teve como referência o personagem de Robert Mitchum?
AJ: Claro. Agrada-me sobretudo a questão de se servir um propósito, um legado. E acho que o Mitchum é exactamente isso, tal como o João Fernandes. O Tiago tocou num ponto que é fundamental: a construcção do personagem também se fez à medida dos acontecimentos. Dito de outra forma, eu não acredito em personagens. Acredito sim que os acontecimentos vão definindo uma espécie de personagem.

Há uma ideia de circularidade que, a meu ver, percorre todo o filme, interna e visualmente, e que se desenha pelo próprio gesto da montagem. Por exemplo, na primeira vez que vemos o João Fernandes, ele está a fazer o volteio com o cavalo e o plano seguinte apanha o rosto do Miguel Borges com a câmara ainda “embalada” pelo movimento do volteio... Esta “forma” já estava pensada ou veio também com o contributo do montador Roberto Perpignani, na tal reescrita?
TG: A ideia da circularidade já existia narrativamente. Mas sem dúvida que a montagem potenciou isso de uma maneira que não estava programada. A circularidade assenta nas emoções que eles vão vivendo, e está na própria herança. Depois, alguns movimentos de câmara têm essa consciência, outros não, mas são potenciados pela montagem do Perpignani… A montagem para ele não é a mesma coisa que para um montador mais jovem, há uma noção de poesia narrativa que é extremamente difícil de alcançar. E quando lhe apresentei o material em bruto, o que ele fez foi de um autêntico garimpeiro!

Regresso à figura romântica do cavalo: que relação o próprio Albano estabeleceu com ele?
AJ: Dois meses antes da rodagem tive aulas de equitação, e para além disso cuidava do cavalo, lavava-o, limpava-o… Quis ir a esses pormenores para estar com ele, para me aproximar daquele animal de porte. Mas há uma coisa que nunca me esqueço, e que foi o [Raúl] Ruiz que me disse, quando trabalhei com ele: “confia sempre nos elementos.” Ele disse-me isto a propósito de uma cena em que o vento estava sempre a despentear-me e eu tinha tendência para ir lá com a mão e corrigir… E neste caso, a minha relação com o cavalo foi essa – de confiança, de escuta, de entrega àquilo que pudesse acontecer. Aqui o animal é que manda.

Inês N. Lourenço, Agosto 2019
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